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Zé Ricardo, curador dos palcos Sunset e Favela e vice-presidente do Rock in Rio e do The Town: pioneiro nas fusões em festivais

OS FEATS SAEM DAS PLAYLISTS

E INVADEM OS PALCOS

Encontros inusitados viram tendência nos festivais brasileiros, e as razões vão muito além da afinidade artística

por_Kamille Viola do_Rio

Marcos Hermes
Marcos Hermes
Encontros inusitados viram tendência nos festivais brasileiros, e as razões vão muito além da afinidade artística

por_Kamille Viola do_Rio

Liniker com Péricles, João Gomes com Vanessa da Mata, Maria Bethânia com Rubel, Criolo com Leci Brandão e Silva. Pouco prováveis à primeira vista, esses encontros aconteceram nos palcos de festivais brasileiros durante o ano de 2023. Unindo artistas de estilos e gerações diferentes, a tendência, que vem ganhando cada vez mais força, saiu das playlists do streaming para eventos Brasil afora, atraindo diferentes públicos para um mesmo evento e contribuindo para que os artistas expandam seus limites criativos e atinjam novos fãs.

Alguns desses encontros ocorreram durante a primeira edição do festival Doce Maravilha, em agosto, no Rio. Um evento que, nas palavras de seu curador, Nelson Motta, nasceu precisamente para juntar estéticas, tribos, nomes improváveis: “Esse é o diferencial que buscamos no Doce Maravilha: misturar artistas que fazem parte da história do Brasil com outros que estão fazendo história no Brasil, jovens, outras gerações. O que é importante no festival é que a pessoa veja encontros inéditos, diferentes. Um festival vive de tudo isso. Não pode ter só coisas que você já viu. Tem que ser inesquecível.”

Consultora em planejamento e gestão de carreira na música, diretora da Sonar Cultural Consultoria e doutora em sociologia, Dani Ribas frisa que essa tendência das collabs no palco, que tem a ver com a própria força dos feats nos últimos anos, é resultado de uma combinação de fatores. Entre eles, os algoritmos.

Ana Cañas e Hyldon dividem o palco Sunset do Rock in Rio: "O palco é o palco, e ali as energias são mais intensas e catárticas", ela diz

“Você procurar fazer um feat com uma pessoa que não está relacionada nos ‘artistas vizinhos’ do seu trabalho (nas plataformas digitais), mas que, de repente, tem uma exposição de público muito maior do que a sua, claro que isso sempre é benéfico, porque você carrega a audiência dessa pessoa, tem inserção em playlists… Muita gente procura o feat por uma questão de essa lógica algorítmica estar moldando um pouco o mundo da música, o mundo cultural de uma maneira geral”, observa.

Do ponto de vista dos programadores dos eventos, ela chama atenção para uma questão ainda mais objetiva: é preciso que o evento se pague. “Não adianta você fazer uma curadoria incrível só com novidades e com coisas em que você está apostando, se isso não vai fazer a conta fechar. Então, às vezes, trazer um artista mais velho, mais consagrado, que interessa a marcas patrocinadoras, é uma estratégia para isso. Ou então justamente o contrário: num evento que tem só esses figurões, escalar gente nova pode trazer um público novo”, analisa Dani Ribas.

Ela comenta ainda que um componente cultural contribui para a consolidação da tendência dos feats e das collabs no palco: o fato de que a questão da representatividade ganhou muita força nos últimos anos. “Às vezes, artistas são convidados (para uma collab) para dar conta dessa pauta, que está permeando toda a agenda das políticas culturais, e até mesmo do fazer cultural”, diz.

VOCÊ PROCURAR FAZER UM FEAT COM UMA PESSOA NÃO RELACIONADA NOS 'ARTISTAS VIZINHOS' DO SEU TRABALHO NO STREAMING SEMPRE É BENÉFICO.

Dani Ribas, diretora da Sonar Cultural e doutora em Sociologia

SUNSET FOI PIONEIRO

Um dos pioneiros em apostar no formato foi o Palco Sunset, do Rock in Rio. Criado em 2008 em Lisboa, chegou ao Brasil na edição de 2011, trazendo encontros inéditos e, em geral, surpreendentes. Sepultura e Zé Ramalho, Alcione e Iza, Ana Cañas e Hyldon foram algumas dessas collabs.

“Fico feliz em ver que a ideia da qual as pessoas duvidaram no início virou tendência. Acho que esse é o papel de uma direção artística, de uma curadoria: propor coisas para o público”, comenta Zé Ricardo, vice-presidente artístico do Rock in Rio e do The Town, e diretor artístico dos palcos Sunset e Espaço Favela.

A receita deu tão certo que o Sunset ganhou prestígio e, em 2024, terá as mesmas dimensões que o Palco Mundo, o principal do evento. “O espaço teve um reconhecimento, e eu também”, comemora Zé Ricardo.

Ele frisa, no entanto, que não basta simplesmente juntar dois artistas de gerações e/ou estilos diferentes de forma aleatória: é preciso sensibilidade para promover as collabs. “Os encontros podem enriquecer muito a carreira dos artistas. Às vezes ele ganha um amigo. Às vezes, descobre um superparceiro de composição. Ou conhece uma pessoa com quem ele quer não só fazer aquele show ali, mas também fazer um feat em uma gravação. Ou fazer um projeto junto e sair em turnê”, enumera Zé Ricardo.

“Por isso, eu me preocupo tanto com que pessoa eu estou colocando junto da outra. Esse cara é legal? Puta artista maravilhoso... Mas ele é generoso? Às vezes, eu chamo uma pessoa e sugiro um artista [para collab], mas sinto no tom da voz que o olho dela não brilhou. Eu mudo a conversa para outro lugar e, daqui a pouco, a gente já está falando de um outro nome, o olho dela brilha, e a gente vai. Tem que ser uma coisa que motive o cara artisticamente”, pontua Zé Ricardo.

O curador defende ainda que, por tirar os artistas da zona de conforto, as collabs inusitadas enriquecem muito o trabalho deles. “A gente começa sendo artista para ganhar o mundo, mas muitas vezes tem uma hora em que entra no automático: show, disco, show, disco... Qual a oportunidade que você tem de experimentar outra coisa, de descobrir uma nova sonoridade de uma maneira natural, que não seja através de pesquisa?”, indaga o diretor artístico do Palco Sunset.

Dani Ribas chama a atenção ainda para o caso específico dos artistas que se apresentam sozinhos, sem nenhum músico de apoio, algo cada vez mais frequente nos dias de hoje. “É muito mais barato viajar assim, e às vezes é a única coisa que viabiliza uma carreira. Por outro lado, esses artistas single, sem banda, precisam de feats e collabs para trazer novidades para a sonoridade. É uma estratégia também”, analisa.

PELO PRAZER DAS TROCAS GENUÍNAS

A cantora e compositora Mahmundi — que cantou com Terno Rei e Fernanda Takai no The Town, em São Paulo, este ano, e no Palco Sunset, no Rock in Rio, com o grupo Plutão Já Foi Planeta, em 2019 — é entusiasta desses arranjos.

FICO FELIZ EM VER QUE A IDEIA DA QUAL AS PESSOAS DUVIDARAM NO INÍCIO VIROU TENDÊNCIA. ESSE É O PAPEL DE UMA CURADORIA: PROPOR COISAS PARA O PÚBLICO.

Zé Ricardo, vice-presidente artístico do The Town e do Rock in Rio

“Quando a gente está conectado, é muito interessante como a música cresce, e o sentimento e o pertencimento para aquilo que a gente gosta de fazer com o público se potencializam muito”, diz. “Já teve uma coisa da indústria testando engajamento, algoritmo e tudo mais, mas o público entende quando não está batendo bem. A própria música também fala por nós quando não está funcionando. Quando a gente tem uma troca genuína, a coisa ganha muito mais. Eu, por exemplo, desse The Town conhecendo um pouquinho mais a Fernanda, que já foi espetacular, ganhei o meu ano com um encontro que pode virar uma parceria”, elogia.

Ana Cañas, que dividiu o palco Sunset com Hyldon, em 2017, e Titãs, em 2019, ressalta que, por mais que a tendência das collabs em cena seja um reflexo dos feats, que hoje dominam as plataformas digitais, ao vivo as coisas são diferentes.

“O palco é o palco, e ali as energias são mais intensas e catárticas”, reflete ela, que recentemente participou do show de 50 anos de carreira de Ney Matogrosso no Rio Montreux Jazz Festival. “Foi uma honra imensa. O público recebe um momento exclusivo e diferenciado, guardando na memória algo que só aconteceu ali. E, para os artistas envolvidos, é muito importante: entendemos melhor quem somos e o que fazemos quando observamos o outro, trocando e somando. É uma oportunidade também de sair do próprio quadrado, arriscar e sentir outros arranjos e repertórios”, complementa.

Fernanda Abreu também é fã das collabs de artistas de diferentes gerações e estilos no palco e comemora que elas tenham se tornado tendência nos festivais. “Esse conceito tem afirmado a diversidade da nossa música e proporcionado ao público conhecer o amplo repertório dos artistas e da música brasileira. Acho fantástico”, elogia.

A cantora e compositora comenta que o encontro “mais esperado, porém também inesperado” que viveu no palco foi o que teve com Marina Lima no Coala, em São Paulo, 2023. E diz que existem muitos nomes com quem gostaria de dividir o palco. “O Brasil é repleto de artistas fantásticos, e é bacana quando se juntam artistas de estilos diferentes e que conseguem criar uma boa sintonia, mostrando que nós não precisamos ficar aprisionados numa caixa estilística apenas. Quem sabe Fernanda Abreu com alguém da bossa nova? Ou com alguém do trap?”, dá a dica aos curadores.

Marina Lima e Fernanda Abreu, emocionadas, durante seu encontro no Coala, este ano
Marina Lima e Fernanda Abreu, emocionadas, durante seu encontro no Coala, este ano
Marina Lima e Fernanda Abreu, emocionadas, durante seu encontro no Coala, este ano
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