por_Eduardo Fradkin • do_Rio
Desde a pandemia, a compositora Flavia Tygel criou mais de 20 trilhas sonoras originais para TV e cinema. Mas uma simples busca nas principais plataformas de streaming deixa claro que praticamente só há um caminho para ouvir esse rico material: ligar a TV ou ir ao cinema.
É PRECISO EXPLICAR PARA OS PLAYERS DO AUDIOVISUAL QUE AS TRILHAS ORIGINAIS DEVEM SER COLOCADAS NAS PLATAFORMAS. É UM ESFORÇO DIDÁTICO.”
Flavia Tygel, compositora de trilhasNas contas oficiais da compositora, encontram-se apenas três álbuns disponíveis para streaming, os dos filmes "Delicadeza", "Torre das Donzelas", "Nada Sobre Meu Pai". Essa discrepância dá uma amostra de como a chamada música incidental feita no Brasil pode ser muito mais explorada pelas plataformas digitais. Compositores como Tygel e Mu Carvalho têm trabalhado para preencher essa lacuna e vêm encontrando receptividade em empresas do audiovisual — mas ainda há barreiras a serem superadas.
Flavia Tygel
"As trilhas que consegui botar no mundo digital foram de projetos autorais. As diretoras, Susanna Lira e Ciça Castello, foram muito parceiras. É importante ter um time atento que, no início do processo, quando os contratos são assinados, indique o interesse do compositor de ter a trilha lançada nas plataformas digitais", diz Tygel. "Um projeto que acabamos de lançar foi um recap da série 'Impuros'. Foi uma ação da Disney para divulgar a série, que iria para a quarta temporada. Então, eu, MC Carol, Paula Azzam e mais três autores (Mariana Feitosa, Jeniffer Loiola e Douglas de Fatima Gonçalves) fizemos um trabalho em parceria e falamos para a Disney: 'vamos colocar isso nas plataformas, vamos lançar em tudo que é lugar, porque as pessoas têm que escutar para além do vídeo'. É preciso explicar para os players do audiovisual que as trilhas originais devem ser colocadas nas plataformas. É um esforço didático."
Após passar 28 anos na Globo, de onde saiu em dezembro de 2021, Mu Carvalho ainda conta com as boas relações que mantém naquela casa para conseguir transferir suas trilhas para os serviços de streaming.
"Desde o fim do meu contrato, eu consegui lançar a música original de duas novelas, ‘O Beijo do Vampiro’ e ‘Chocolate com Pimenta’. Recentemente, procurei a Globo para lançar a música de uma novela antiga, ‘Alma Gêmea’. No Twitter, tem um pessoal que me pede isso há um tempão. E nunca foi lançado, nem em CD. Aí, entrei em contato com o departamento de produção musical da Globo, que topou. Eu escolhi 27 músicas e as remasterizei. Fiz a ficha técnica de todas as faixas, a relação de quem está tocando em cada uma. O departamento de arte vai fazer uma capa, e esse disco será lançado em janeiro", anuncia ele. "Sou eu que corro atrás, para botar meu bloco na rua. Faço a proposta e dou suporte, entregando o material mixado, masterizado e com ficha técnica.
Mu Carvalho
”Gerente de direitos musicais da Globo, Flavia Trigo afirma que a empresa tem investido nas trilhas incidentais, feitas exclusivamente para a emissora, mas observa que há uma questão pecuniária a ser resolvida.
"O digital ainda é um enigma. Então, a gente vem fazendo um grande estudo interno em relação a esse potencial de mercado. Eu acho que as gravadoras e editoras veem isso como um pote de ouro, uma coisa muito rentável, e cobram valores muito altos. Mas a gente ainda não consegue ter um retorno de execução pública satisfatório para fazer essa conta fechar" , diz Trigo, referindo-se não só às trilhas instrumentais como também às que trazem canções.
A executiva da Globo cita o próprio Mu Carvalho para explicar a equação de difícil solução: "Quando eu boto uma trilha incidental do Mu em um produto, quero que ele receba pela execução pública. Mas o retorno financeiro para o Mu ou para a própria Globo não vem na medida que a gente considera ideal. A distribuição do digital ainda é muito pequena, porque é por views. É diferente da TV aberta que, quando você coloca algo no ar, alcança 70 milhões de brasileiros. No digital, cada um escolhe o seu cardápio.”
O gerente de atendimento da UBC, Marcio Ferreira, aprofunda o questionamento: "A concorrência nas plataformas é grande. São incluídos diariamente mais de 100 mil fonogramas. Há gêneros que acabam dominando as execuções. Quando você lança algo num streaming de música, tem que pensar no apelo que vai ter, em que tipo de playlist vai funcionar. Uma trilha é feita para contar uma história, seja de um filme ou uma novela. Fora daquele contexto, ela perde um pouco do seu sentido. Então, é preciso que haja uma estratégia de marketing.”
No início deste ano, a Globo assinou contrato com a empresa de distribuição digital de música ONErpm Brasil justamente para desenvolver novas estratégias de marketing e melhorar sua atuação nesse campo. Para o presidente da ONErpm Brasil, Arthur Fitzgibbon, é necessário envolver os compositores nesse esforço.
"Nosso papel é fazer com que o artista produza não só pensando na televisão, mas também na aceitação do público ouvindo dentro do streaming. É uma multiplicação do alcance da audiência", explica Arthur Fitzgibbon, usando a novela "Vai na Fé" como exemplo de uma iniciativa bem-sucedida. "Teve um personagem ali que era o Lui Lorenzo, um cantor fictício que lançava as músicas dentro da novela. Essas músicas foram produzidas para a trama. A gente apontou que isso tinha público, trouxe para o streaming, e teve uma renovação do ciclo produtivo da música. A pessoa conhece a música através da televisão e, quando termina a novela, vai para uma plataforma de streaming buscá-la. Lançar algo no digital não tem dificuldade. O que exige trabalho é lançar com planejamento, promoção e marketing.”
A forma correta de "empacotar" a música incidental é uma das recomendações feitas pela ONErpm Brasil aos compositores.
"A música instrumental tem que ter começo, meio e fim. Se é uma faixa que dura 18 segundos, feita para uma cena de um beijo de um casal, não dá para transformar numa música. Mas uma (composição) que tenha três minutos, com um conceito artístico, a gente transforma em fonograma. Então, quando há uma trilha incidental de alto impacto, o próprio pessoal da TV Globo fala com o artista para transformar esse material em áudios de três minutos, de modo que virem músicas", diz Fitzgibbon.
A fidelização do público, que passa a buscar novas trilhas de um nome já conhecido, é outra tática importante nesse mercado. A compositora Flavia Tygel observa essa situação na sua própria casa.
"Será que só as músicas comerciais têm apelo? Ou a gente pode trabalhar para que as músicas instrumentais também cheguem às pessoas, inclusive para a formação de ouvintes?", indaga. "A minha filha de 16 anos é fã, desde pequena, do Studio Ghibli. Então, ela fica esperando lançarem no cinema uma nova animação e, depois, corre para as plataformas para ouvir as músicas e tirar no piano os temas daquele filme. Ou seja, a trilha incidental pode correr o mundo e agir na formação de gosto, de cultura, de conteúdo musical.
” Atualmente trabalhando na música do filme "Tudo por um Popstar 2", ela se frustra ao tentar usar suas próprias composições em postagens nas redes sociais:
"O Instagram, por exemplo, não me permite acessar os meus álbuns instrumentais. Talvez porque considere que uma música instrumental tenha menos engajamento do que as canções comerciais. Então, restringem o acesso. Eu só consigo acessar os meus álbuns que têm alguma canção. Por exemplo, 'Nada Sobre Meu Pai' tem uma canção de abertura que eu compus em espanhol, com voz, interpretada por um dos personagens.
Esse álbum está disponível se eu quiser sincronizar no Stories ou no Reels. Os demais, não, porque são meramente instrumentais, e eu digo meramente entre aspas. Poxa vida!" •